segunda-feira, 8 de julho de 2024

Lorena Cabnal e Julieta Paredes: diálogos para um feminismo comunitário



Maria Eugênia Ramos Ferreira


O presente trabalho objetiva apresentar os textos “Acercamiento a la construcción de la propuesta de pensamiento epistémico de las mujeres indígenas feministas comunitarias de Abya Yala” de Lorena Cabnal e “Hilando Fino” de Julieta Paredes. Ambas escritoras indígenas da latinoamérica e precursoras do feminismo comunitário. A autora Lorena Cabnal escreve a partir de sua experiência enquanto mulher, nascida na Guatemala, ativista, pertencente ao povo indígena maya-xinca; e a escritora Julieta Paredes parte, em seus escritos, de seu lugar enquanto mulher, também indígena, mas do povo aimará, nascida na Bolívia e militante. 

É por intermédio desse lugar de fala que as autoras propõem repensar a sociedade patriarcal e opressora que vivemos. Cabnal (2010), nesse sentido, introduz sua reflexão relatando que as opressões históricas e estruturais a fizeram reconsiderar a história e a cotidianidade em que vive, aderindo, deste modo, a um feminismo comunitário. Para ela, “el feminismo comunitario es una recreación y creación de pensamiento político ideológico feminista y cosmogónico, que ha surgido para reinterpretar las realidades de la vida histórica y cotidiana de las mujeres indígenas, dentro del mundo indígena” (CABNAL, 2010, p. 11-12). Essa definição parte da proposta elaborada pelas feministas comunitárias do coletivo Mujeres Creando Comunidad, impulsionado por Julieta Paredes.

Paredes (2010) entende que as mulheres enquanto a metade de cada povo são tratadas como mais um problema dentre tantos outros problemas, assim os problemas que transpassam as mulheres são colocados como menos importantes, sempre há algo mais urgente a ser solucionado. A autora percebe o feminismo, dessa maneira, como “[...] la lucha y la propuesta política de vida de cualquier mujer en cualquier lugar del mundo, en cualquier etapa de la historia que se haya rebelado ante el patriarcado que la oprime” (2010, p. 76).

Desenvolvimento:

Com essas perspectivas em mente, as autoras desenham os caminhos para um feminismo comunitário. Julieta Paredes (2010) concebe a revolução a partir da Bolívia pelas mãos dos povos indígenas e, principalmente, das mulheres feministas comunitárias. Escrevendo desde a Bolívia, a escritora aponta que o feminismo ocidental responde às necessidades das mulheres da sociedade ocidental, “ellas desarrollaron luchas y construcciones teóricas que pretenden explicar su situación de subordinación” (2010, p. 75). 

Quando essas lutas e construções teóricas instauram-se no mundo de relações coloniais, imperialistas e transnacionais, essas teorias convertem-se em hegemônicas no âmbito internacional e invisibilizam, deste modo, as demais realidades e aportes. Paredes (2010) afirma que não pretende desmerecer a luta dessas feministas ocidentais em suas sociedades, mas posicionar o processo feminista e as mudanças por meio da Bolívia. 

O feminismo ocidental nasce na revolução francesa com a fundação da república, da democracia e do Estado moderno. Surge para contrariar essa sociedade liberal e burguesa que defende os direitos individuais dos homens burgueses, mas não das mulheres burguesas. Já que, quando as mulheres passaram a buscar os direitos instituídos pela revolução francesa (fraternidade, igualdade e liberdade; direito à propriedade privada e ao voto), foram guilhotinadas (2010, p. 77). 

Deste modo, a autora indica:

El feminismo occidental afirma a la individua mujer frente al individuo hombre. La revolución francesa afirma los derechos de los individuos hombres, la propriedad privada, la libertad, derecho al voto, la igualdad entre hombres, etc. Las mujeres no tenían estos derechos, por eso hay dos formas de afirmarse de las mujeres como individuas frente a los hombres (2010, p. 77-78). 


Compreende que, desde a luta de mulheres feministas comunitárias, não há revolução: 

[...] cuando nuestros cuerpos de mujeres sigan siendo colonia de los hombres, los gobiernos y los Estados. No hay revolución, cuando las decisiones sobre nuestros cuerpos, sean tomadas por los hombres, curas, jueces, maridos y padres. Las mujeres somos la mitad de cada pueblo, una mitad que cuida cría, protege y va a parir a la otra mitad que son los hombres (2010, p. 39). 


Na mesma linha, Cabnal (2010) concebe a pluralidade dos feminismos construídos no mundo inteiro visando dar continuidade a resistência, transgressão e epistemologia das mulheres nos espaços e temporalidades para a abolição do patriarcado originário ancestral e ocidental. O feminismo comunitário, na concepção da autora, fez com que passassem a olhar para dentro de si e das comunidades tradicionais de forma crítica, radical, rebelde e transgressora. Esse olhar é, portanto, fundamental para dar vida ao feminismo comunitário. 

Acerca disto, Paredes (2010) parte da compreensão de que a comunidade é o princípio inclusivo que cuida da vida. Para construí-lo é necessário desmistificar a noção chacha-warmi (homem-mulher) que nos impede de analisar a realidade de vida das mulheres no nosso país. No feminismo ocidental, essa luta significou que as mulheres posicionaram-se como indivíduos perante os homens. 

Nessas duas vertentes do feminismo, a mulher é igual ao homem ou a mulher é diferente do homem, ou seja, trabalha-se o conceito de igualdade ou de diferença. Essas concepções, no entanto, não funcionam dentro da percepção boliviana, uma vez que, “[...] nuestras formas de vida aquí en Bolivia con fuertes concepciones comunitarias” (2010, p. 79). Assim, para pensar dentro da realidade em que vive, a autora afirma: “No queremos pensarmos frente a los hombres, sino pensarnos mujeres y hombres en relación a la comunidad.” (2010, p. 79).

Como mulher indígena, Cabnal (2010) afirma que os pensamentos das mulheres indígenas foram alienados pelo pensamento do feminismo ocidental e, deste modo, as mulheres indígenas constituem-se como “mujeres con reflexiones y acciones aculturales.” (2010, p. 14). Usa a categoria “patriarcado” pelo seguinte entendimento:

[...] la categoría ‘patriarcado’ ha sido tomada como una categoría que permite analizar a lo interno de las relaciones intercomunitarias entre mujeres y hombres, no solo la situación actual basada en relaciones desiguales de poder, sino cómo todas las opresiones están interconectadas con la raíz del sistema de todas las opresiones: el patriarcado (2010, p. 14).

É por essa perspectiva que se constrói a epistemologia do feminismo comunitário, pois afirma-se que existe o patriarcado originário ancestral e este é um sistema milenar e estrutural de opressão contra as mulheres indígenas ou originárias (2010, p. 14). A base de opressão desse sistema é estabelecida desde uma filosofia que toma a hetero-realidade cosmogônica como uma norma para  vida das mulheres e dos homens e deles para sua relação com os cosmos. 

Sob essa concepção, Paredes (2010) introduz a noção dos indigenistas de que o feminismo é ocidental e que não há necessidade de introduzir esses pensamentos dentro da sociedade. Para eles, a prática da complementaridade chacha-warmi (homem-mulher) é suficiente e que só é necessário praticá-la, já que o machismo chegou com a colonização. 

O que ambas as autoras argumentam é a existência do patriarcado e do machismo dentro das comunidades indígenas. Paredes (2010) defende que o chacha-warmi não reconhece a real situação das mulheres indígenas, não incorpora a denúncia de gênero na comunidade e naturaliza a discriminação. Denomina como “machismo indigenista”, este defende: 

que es natural que las mujeres tengan esos roles en las comunidades, no quieren analizar y reconocer que esos roles y actividades de las mujeres, son consideradas menos, de menor valor, de menor importancia, lo cual significa mayor explotación de la fuerza de trabajo de las mujeres (2010, p. 80). 


Naturaliza-se, portanto, a discriminação, as desigualdades, a exploração e a opressão das mulheres: “es considerar natural que las mujeres cumplan esos roles y por consecuencia natural que estén subordinadas y los hombres privilegiados por ejempo con tener más tiempo, escula, mayor salario, mayor respeto a su palabra” (2010, p. 80). 

A autora revela que, o chacha-warmi possui essa ideia de complementaridade, porém é uma complementaridade hierárquica e vertical, deste modo, homens acima e privilegiados e mulheres abaixo e subordinadas. Deseja, portanto, uma complementaridade horizontal, sem hierarquias. 

A comunidade, na Bolívia, significa: “los hombres de la comunidad y no las mujeres.” (2010, p. 91). Deste modo, as decisões, as falas, as representações veem dos homens e as mulheres permanecem atrás dos homens ou abaixo deles ou subordinadas, como brindes dos homens. 

Na prática sociopolítica das comunidades, nacionalidades, povos, organizações e movimentos sociais, a representação e o poder continua vindo dos homens. É a expressão da patriarcalização e da colonização das comunidades que consideram alguns inferiores ou sem direitos e oportunidades de outros.

Cabnal (2010) emprega o termo patriarcado originário para abordar a configuração de papéis, usos e costumes, princípios e valores dentro das comunidades originárias. Para a autora, é uma questão que se fortaleceu com o tempo. As guerras entre os povos originários é um exemplo de como funciona o patriarcado originário, na disputa por diferentes territórios, os vencedores exerciam supremacia contra os vencidos. 

Essas guerras eram históricas e são narradas em livros antigos, glifos (signos entalhados ou pintados, como hieróglifos egípcios ou os glifos da escrita maia) e inscrições em pedra. As histórias escritas e/ou passadas pela oralidade sobre essas guerras abordaram os feitos de grandes senhores, governantes e guerreiros, dessa forma, a autora questiona:

si los hombres eran guerreros e iban y hacían la guerra contra sus vecinos territoriales, ¿dónde quedaban las mujeres, cuál era su rol?, esta división sexual de la guerra, también me lleva a pensar en cómo se configuraba la estratificación de castas de guerreros, de gobernantes, reinados, guías espirituales, sabios y pueblo. (2010, p. 15).

O patriarcado originário ancestral se reconstrói com a penetração do patriarcado ocidental. Nessa conjuntura, a autora aponta que se cria espaços próprios para o nascimento da perversidade, do racismo, do capitalismo, neoliberalismo, globalização e outros. Para Cabnal (2010), existiam condições prévias nas culturas originárias para o fortalecimento do patriarcado ocidental. 

Essa hetero-realidade cosmogônica originária é a norma que estabelece desde o essencialismo étnico que todas as relações da humanidade e desta com os cosmos está baseada em princípios e valores como a complementariedade e a dualidade heterossexual para a harmonização da vida. De acordo com a autora, isso constitui a mais sublime imposição ancestral da norma heterossexual obrigatória, na vida de mulheres e homens indígenas, e é legitimada por práticas espirituais que a chamam de sagrado (2010, p. 16). 

A autora aponta que nas cosmovisões originárias, os elementos cósmicos feminino e masculino organizam-se em que um depende, se relaciona e se complementa com o outro. Na base filosófica dessas cosmovisões, fortaleceu-se práticas de espiritualidade hegemônica com a qual se perpetua a opressão das mulheres na sua relação heterossexual com a natureza. Nesse sentido:

el patriarcado es el sistema de todas las opresiones, todas las explotaciones, todas las violencias, y discriminaciones que vive toda la humanidad (mujeres hombres y personas intersexuales) y la naturaleza, como un sistema históricamente construido sobre el cuerpo sexuado de las mujeres (2010, p. 16). 


Perante isto, Paredes (2010) compreende que a comunidade, composta de mulheres e homens, invisibiliza mulheres devido a hegemonia masculina. Como solução, Paredes (2010) reconhece a alteridade, ou seja, a existência real do Outro, para a redistribuição dos benefícios de trabalho e a produção em partes iguais, isto é, redistribuir os frutos do trabalho e das lutas. Devolver, deste modo, o que o patriarcado roubou. Conclui afirmando “[...] que las mujeres somos la mitad de cada comunidad, de cada pueblo, de cada nación, de cada país, de cada sociedad”  (2010, p. 94).

Para Cabnal (2010) esses acontecimentos levaram-a a perceber a importância de incentivar os pensamentos das mulheres indígenas de diversos povos originários. É preciso criar espaços e encontros de reflexão para construir coletividades transgressoras e propostas para uma nova vida, contra o patriarcado e as hegemonias que circundam as comunidades e o mundo. Essas ações, de acordo com a autora, competem não só as mulheres, mas a homens visando “[...] refuncionalizan, transforman o apuestan a las aboliciones.” (2010, p. 25). 


Referências bibliográficas

CABNAL, Lorena. Acercamiento a la construcción de la propuesta de pensamiento epistémico de las mujeres indígenas feministas comunitarias de Abya Yala. IN: ACSUR. Feminismos diversos: el feminismo comunitario. 2010, p. 7-33.

PAREDES, Julieta. Hilando Fino. Desde el feminismo comunitario. La Paz: Enero, 2010.

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Lorena Cabnal e Julieta Paredes: diálogos para um feminismo comunitário Maria Eugênia Ramos Ferreira O presente trabalho objetiva apresentar...