Maria Eugênia Ramos Ferreira
Introdução
Uma vez conhecida como a “cidade vermelha”, a cidade de Santos/SP foi duramente afetada pela Ditadura Civil-Militar instaurada em 1964. Estabeleceram-se uma série de medidas para controlar a região, entre elas: a chegada do navio-prisão Raul Soares, rebocado do Rio de Janeiro, em 24 de abril de 1964. O navio ficaria na cidade até novembro, quando é rebocado de volta ao Rio de Janeiro e desmontado (BURATTO, 2017); e, em 12 de setembro de 1969, o município passa a ser considerado área de Segurança Nacional em virtude do Decreto-Lei nº 865 (BRASIL, 1969) e, deste modo, passaram a ser realizadas eleições indiretas para o cargo de prefeito.
Atracado no Porto de Santos, tomado por inúmeras avarias, o navio serviu de prisão e espaço de tortura para cerca de 500 presos políticos, muitos sindicalistas ou integrantes do movimento estudantil. Assim, iniciaremos o presente trabalho abordando a trajetória percorrida pelo movimento sindical em Santos até o golpe militar de 1964.
Os caminhos do movimento sindical em Santos/SP
São diversas as razões para o controle ditatorial no município caiçara. De acordo com Rosa Maria Cardoso da Cunha (s/d, p. 3), “os trabalhadores e seu movimento sindical constituíram o alvo primordial do golpe de Estado de 1964, das ações antecedentes dos golpistas e da ditadura militar”. Destacaremos, neste sentido, a importância do movimento sindical na região.
Em virtude das transformações passadas por Santos devido ao porto, ao aumento das exportações de café e da movimentação de navios, o movimento operário destacou-se em nível nacional. O autor Rafael Pedroso Buratto (2017) indica que em 1897 ocorreu uma das primeiras greves no município que durou 15 dias. Os trabalhadores reivindicavam melhorias na área da segurança para exercerem suas atividades e o ajuste de seus salários, a greve foi interrompida com a chegada de tropas à Santos por meio de um navio cruzador à mando do Estado (BURATTO, 2017).
Os carroceiros iniciam outra greve em 1904, esta é aderida por outras classes trabalhadoras e a cidade passa pelo risco de ficar sem abastecimento. Exigia-se aumento de salários e regulamentação das admissões e demissões dos empregados, novamente a greve é interrompida violentamente com a intervenção do Governo Federal que enviou outro navio cruzador para a cidade. Quatro anos depois instaura-se uma nova greve, mobilizada pelos operários da Companhia Docas, empresa privada que administrava as operações do porto santista. Os trabalhadores reivindicavam uma jornada de trabalho de 8 horas e o aumento salarial. Foram reprimidos violentamente com tropas do exército, o que gerou inúmeros conflitos. Para controlar a situação e finalizar a greve, a Associação Comercial de Santos promoveu negociações entre grevistas e a Companhia Docas. A greve foi encerrada com o governo comprometendo-se e responsabilizando-se pelo reajuste salarial dos operários (BURATTO, 2017).
Estes são alguns exemplos de greves ocorridas na região que tiveram, como resposta, a violência do Estado. A tensão na cidade e a instauração de greves gerais, paralisações e manifestações ocorreram até a década de 1920. Buratto (2017) identifica que: “Os sindicatos lutavam por redução na jornada de trabalho, regularização do trabalho de mulheres e crianças, aumento de salário e até contra a
inflação.” (p. 17).
As lutas dos sindicatos unificou-se através do Fórum Sindical de Debates (FSD), fundado em 1953 por líderes sindicais de diversos setores. Nele, agregou-se 53 sindicatos da baixada santista. Tornou-se, nesse sentido, símbolo da “[...] unidade de pensamento e ação dos trabalhadores” (2017, p. 19). No final da década de 50, por exemplo, todos os setores do porto de Santos estavam mobilizados “[...] em manifestações de solidariedade às organizações de classe” (2017, p. 19). Apesar do FSD não ter sido reconhecido pelas autoridades estaduais e federais, a Câmara Municipal de Santos considerou-o como uma utilidade pública.
Nos anos seguintes, entre 1960 a 1964, o Brasil viveu o auge da luta sindicalista (RODRIGUES, 1997 apud COELHO, 2019), o que foi sentido em Santos. O pesquisador Leôncio Martins Rodrigues (1997), citado pelo professor Helder Marques de Sousa Coelho, afirma:
A cidade de Santos sempre ocupou um espaço relevante no movimento sindical do País em virtude da importância de seu porto no qual os comunistas tiveram um papel destacado em vários momentos. Nos primeiros anos da década dos sessenta, o papel de Santos e da Baixada Santista na política e no sindicalismo brasileiro viria a se ampliar ainda mais depois da implantação de novas atividades industriais de base, como a Refinaria Arthur Bernardes e a Cosipa, que fizeram do Sindipetro e dos Metalúrgicos de Santos, ao lado do Sindicato da Estiva, forças importantes no movimento sindical e mesmo na política do País (RODRIGUES, 1997 apud COELHO, 2019, p. 75).
Até o início da ditadura civil-militar, a cidade de Santos enfrentou inúmeras greves e paralisações: foram registradas seis paralisações em 1960; no ano seguinte, cinco paralisações no porto e uma greve geral na baixada santista; em 1962, três greves gerais na região e 18 movimentações para início de greves, ou seja, estados de greve; 23 greves realizadas no porto de Santos durante o ano de 1963. Essas greves tiveram diversos motivos, entre eles a questão trabalhista e o apoio ao movimento das demais categorias. Em setembro deste mesmo ano, por exemplo, o Fórum Sindical de Debates e a União dos Sindicatos da Orla da Marítima de Santos convocaram uma greve geral em solidariedade aos funcionários da Santa Casa de Misericórdia de Santos que se negou a atender as reivindicações destes (BURATTO, 2017, p. 19; COELHO, 2019, p. 76).
Sobre esta última greve em específico, o governador de São Paulo, Adhemar Barros respondeu violentamente. A polícia militar prendeu cerca de 200 pessoas, o que ampliou o movimento. O Comando Geral dos Trabalhadores (CGT) respondeu ameaçando uma greve geral de amplitude nacional e o Ministro da Guerra, Jair Dantas Ribeiro, ameaçou ordenar a intervenção na cidade (COELHO, 2019, p. 76). O Secretário de Segurança Pública de São Paulo acusou José Gomes, prefeito de Santos, de inflar a greve, ameaçando prender José Gomes. O prefeito, por sua vez, publicou uma nota clamando pela resistência da população.
O governo de João Goulart passou a trabalhar, por intermédio do Ministro do Trabalho, Amaury Silva, para encerrar a greve, liberar os presos e dar um fim às inúmeras ameaças. Quatro dias após o início da greve, o FDS declara nos jornais que a greve foi suspensa e que o movimento grevista saiu vitorioso. É importante apontar que essas greves apresentavam resultados, o setor portuário conquistou no ano de 1963 “[...] um conjunto de 17 benefícios, entre eles, férias em dobro, licença-prêmio e complementação aos aposentados para equiparação salarial com os portuários da ativa.” (COELHO, 2019, 76).
No ano seguinte, em 31 de março de 1964, os militares desferiram um golpe de Estado. Neste dia, os sindicatos mais influentes da cidade foram invadidos, sendo eles: o Sindicato dos Empregados na Administração Portuária e o Sindicato dos Estivadores e dos Conferentes de Carga e Descarga. Buratto (2017) entende que a escolha de invadir primeiro estes dois sindicatos deu-se “[...] por serem potencialmente perigosos devido à quantidade de trabalhadores que poderiam ser
mobilizados em pouco tempo” (2017, p. 20). Em sequência, os sindicatos sofreram com a intervenção do Estado, sendo atribuídos interventores civis que estivessem ligados às suas categorias.
Cardoso (s/d) afirma que “[...] cerca de 70% dos sindicatos com cinco mil filiados ou mais” (p. 6) sofreram intervenção durante a Ditadura Civil-Militar. Entre os anos de 1964 a 1970 foram afetadas 536 entidades e cassados cerca de dez mil dirigentes sindicais (GASPARI, 2002 apud CARDOSO, s/d). Além do cerceamento aos sindicatos, o Estado brasileiro empenhou-se em empregar uma política terrorista à população brasileira. A seguir iremos observar um desses casos a partir do navio-prisão Raul Soares.
O navio-prisão Raul Soares: da estrutura às torturas
Chega, no dia 24 de abril de 1964, o navio-prisão Raul Soares aos mares santistas. Construído em 1900 por uma armadora alemã e batizado de Cap Verde, o navio transportava até 580 passageiros. Ao final da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), o navio foi repassado aos britânicos, momento em que permaneceu inutilizado até 1922, quando foi recomprado pela armadora alemã Hamburg Süd (SOUZA, 2004, p. 24). Agora, sob o nome Madeira, o navio realizava viagens entre a Europa e a América do Sul. Deixa de transportar somente pessoas, inserindo-se no mercado de transporte de cargas.
O Memorial da Resistência, em material produzido no ano de 2014 e denominado “Navio Raul Soares”, entende que devido aos avanços da construção naval, o navio Madeira tornou-se abaixo da qualidade esperada e, em 1925, foi comprado pela empresa Lloyd Brasileiro, uma estatal nacional de navegação. Assim, rebatizaram-o para “Raul Soares”. Sobre os usos do navio, Buratto (2017, p. 22) indica:
A embarcação foi utilizada na rota Norte e Nordeste do país para o Porto de Santos, transportando migrantes e cargas. Durante a Segunda Guerra Mundial, Raul Soares foi cedido para o transporte da Força Expedicionária Brasileira em viagens de ida e volta à Europa.
Foi desativado e permaneceu atracado no cais da Ilha de Mocanguê até 1964, quando os militares requisitaram-o em função da superlotação dos cárceres. Circunstância comum à Ditadura Civil-Militar uma vez que: “Espaços anódinos ao sistema prisional foram tomados “emprestados” para caber os que cometeram o crime de pensar diferente dos que chegavam para comandar o país.” (COMISSÃO, 2013, p. 2).
O navio foi pintado de preto, rebocado para Santos pelo rebocador “Tridente” da Marinha de Guerra e atracado na Ilha de Barnabé, no porto de Santos. Dividiu-se os porões em pequenas celas e os calabouços do navio eram utilizados para torturas. Ironicamente, as celas em que ocorriam as torturas receberam os nomes de boates localizadas em Santos. Buratto (2017) identifica três celas: “El Marroco” denominava a cela próxima a caldeira do navio, em que o calor era insustentável; ao passo que “Night and Day” referia-se a cela ao lado do frigorífico; e “Casablanca” onde as fezes dos presos eram jogadas (2017, p. 25).
Entre os seus primeiros presos políticos estavam “[...] sindicalistas e operários que haviam se envolvido nas inúmeras greves que atravessaram as décadas de 1950 e 1960 no litoral paulista, e militares que não apoiaram o golpe.” (PROGRAMA, 2014, p. 3). Buratto (2017, p. 23) afirma que os primeiros presos políticos eram quarenta sargentos do Exército e da Aeronáutica, confinados, até então, na Base Aérea de Santos e no Forte dos Andradas, ambos em Guarujá/SP.
Acerca desta questão, o relatório, encontrado nos arquivos do Comitê Brasileiro pela Anistia no acervo Armazém Memória, revela que o golpe de 1964 provocou uma repressão generalizada e indistinta de civis e militares. O documento reafirma o que foi levantado por Buratto (2017), entre os militares presos estavam sargentos e marinheiros que se aliaram às forças revolucionárias ou progressistas. Com relação aos civis foram perseguidos, principalmente, os integrantes do movimento camponês, dos sindicatos, associações, federações e ligas. A repressão, no entanto, não restringia-se somente a estes, deste modo, estudantes, funcionários públicos e ferroviários, por exemplo. O Comitê resume:
todos os que, de uma forma ou de outra, haviam se organizado e participado, com maior ou menor intensidade, na luta pela transformação da sociedade brasileira, se viram de um instante para outro privados de suas entidades de classe, perseguidos em suas casas ou locais de trabalho; inúmeros foram presos e torturados (s/d, p. 73).
A Comissão Nacional da Verdade (2014) identifica que o navio-prisão Raul Soares recebeu presos em massa. De acordo com o relatório da Comissão (2014, p. 309):
As prisões em massa começaram a ocorrer antes mesmo do início do golpe militar, mas já dentro de sua lógica e fundamento, com o fim de inviabilizar a atuação dos sindicatos e as conquistas que poderiam advir da luta dos sindicalistas em favor dos trabalhadores brasileiros.
O navio estava em condições precárias e recebeu cerca de 500 presos. Este número é estimado pela jornalista e pesquisadora Lídia Maria de Melo, autora do livro “Raul Soares: um navio tatuado em nós”. É preciso, segundo a jornalista, computar as pessoas que passaram dois ou três dias no navio, atualmente contempla-se apenas os que permanecerem meses no navio-prisão (PROGRAMA, 2014, p. 3).
Entre os presos estavam, por exemplo, o Dr. Thomas Maack, médico e antigo professor da Universidade de São Paulo - USP. Maack envolveu-se, desde sua juventude, com o movimento estudantil e sindicatos. Era auxiliar de ensino no Departamento de Fisiologia da FMUSP quando foi preso em 8 de junho de 1964. Levado por agentes do Departamento da Ordem Pública e Social (DOPS), o médico era acusado de subversão e de planejar a inserção do comunismo no Brasil. Passou três semanas no Quartel do Exército de Quitaúna, em Osasco/SP, até ser transferido para o Palácio da Polícia em Santos/SP. Passou quatro meses incomunicável no navio-prisão Raul Soares (COMISSÃO, 2014, p. 8).
Maack, em depoimento à Comissão Nacional da Verdade, afirma:
Meus pais não puderam me ver enquanto eu fiquei preso porque em Quitaúna e no Raul Soares eu estava incomunicável, e no Palácio da Polícia para onde fui levado quando a “prisão” do navio foi desativada, as condições eram tão ruins e deprimentes, que eu não queria que eles me vissem naquele lugar (2014, p. 8).
Ademar dos Santos, líder sindical do Sindicato dos Serviços Portuários e diretor suplente da Federação Nacional dos Portuários, foi preso em 1964. Afirma-se que, dias antes do golpe, o sindicalista foi fotografado ao lado de Leonel Brizola, Miguel Arraes, Francisco Julião e outras lideranças em um encontro de metalúrgicos na cidade de Contagem, MG (COMISSÃO, 2014, p. 10). De início, enviaram-o para unidades militares até, por fim, ser encarcerado nos porões do navio Raul Soares. O relatório aponta que Ademar dos Santos permaneceu incomunicável por noventa e dois dias o que se enquadra em uma situação de isolamento prolongado “[...] que viola a integridade psíquica e moral da pessoa e os direitos de ter uma defesa efetiva e de questionar a legalidade da detenção.” (2014, p. 825). O sindicalista relatou à Comissão:
Depois de uma incomunicabilidade de 92 dias no camarote 29, os colegas Iradil e Aldo Ripasarti reivindicaram o fim de sua incomunicabilidade e a descida para o porão. Eu estava todo este tempo sem falar com nenhum deles e sem banho de sol ou arejamento, como chamavam (2014, p. 825).
As condições no navio-prisão eram precárias, as celas eram invadidas pela água do mar, “[...] em algumas a água chegava até o joelho.” (2014, p. 825), constantemente o navio era infestado por insetos. Além disso, os presos enfrentam muito frio, pois não havia cobertas para todos e o chão era frio e úmido. Com relação a alimentação, o documento revela que, em diferentes depoimentos, descreveu-se a comida como “‘nojenta’, ‘ruim’, e feita em péssimas condições de higiene, e os presos tinham que utilizar colheres que não eram lavadas.” (2014, p. 825). Na questão de saúde, o médico Thomas Maack teve que ajudar no atendimento dos presos e tripulantes, muitos com doenças crônicas, uma vez que o médico encarregado pelo serviço no navio deixou de comparecer. Em função disto, Maack foi homenageado pela Câmara Municipal de Santos e pelos Sindicatos e Trabalhadores Unidos do Porto de Santos com o título “Cidadão Portuário” em 2012.
Quando as visitas eram permitidas ocorriam de modo humilhante para as companheiras e familiares dos presos, desta forma, enfrentavam
[...] revistas vexatórias nos navios, situação que infringe a integridade e a dignidade humana. Há relatos de que, no Raul Soares, as mulheres eram obrigadas a ir de vestidos, não podiam usar calças, para que, quando subissem a escada de corda do navio, fossem zombadas pelos militares (2014, p. 825).
As mulheres deviam ficar nuas para as revistas que eram realizadas por outras mulheres. O uso de vestidos era obrigatório nas repartições públicas. Wilma Maransaldi, neta de Waldemar Neves Guerra (presidente do Sindicato da Administração dos Serviços Portuários), relembra que se indignava com essa situação durante as visitas ao seu pai no navio-prisão Raul Soares. Ademais, os militares proibiram constantemente que as famílias levassem alimentos para os presos. Maransaldi recorda (2014, p. 826):
[...] tem uma imagem que não me sai da lembrança. A de Geni
Guarnieri, que não conseguia subir a escadinha estreita, de corda. Chorava de medo enquanto os marinheiros riam dela. E também a da esposa do Osmar Alves Campos Golegan, que estava grávida e também tinha dificuldade para subir. Nenhum deles ajudava.
As visitas aos presos “incomunicáveis” ocorriam com a presença de dois soldados. Benedita Ripassarti, viúva de Aldo Ripassarti, relatou à Comissão: “Íamos para a fila no porto às quintas-feiras e domingos pegar o passe para entrarmos nas lanchas que nos levavam até o navio. Eu preparava algumas merendas para ele.” (2014, p. 826).
No navio os presos políticos sofriam com torturas físicas e psicológicas nas celas improvisadas. Nelson Gatto relatou serem constantes as ameaças de serem jogados em alto-mar ou aprisionados nos calabouços do navio, outros relatos indicam que os militares ameaçavam afundar o navio em alto-mar com todos dentro. Entre as práticas de tortura física estava a transferência constante de presos entre celas próximas a caldeira e celas próximas ao frigorífico. Vários presos políticos enfrentaram essa forma de tortura, no relatório da Comissão Nacional da Verdade (2014) destacam-se os nomes de Nelson Gatto, Aldo Ripassarti e Tomochi Sumida.
O estudante Tomochi Sumida, na época diretor da UNE, permaneceu trancado em um frigorífico: “De tempos em tempos era permitida a entrada de ar. Em seguida era levado para a cabine ao lado da caldeira. Franzino, Sumida parecia ficar a cada dia mais debilitado em razão dessas bruscas mudanças de temperatura.” (OLIVEIRA, 2013, p. 50 apud PROGRAMA, 2014, p. 5).
Maack confirma, em depoimento, a série de torturas contra Sumida. De acordo com o médico, o aprisionamento em celas inundadas, como ocorreu com ele, ou em celas com variações extremas de temperatura eram as formas de castigo e punições mais comuns. Assim, os presos pediam-lhe que os ajudasse e Maack encarregava-se de informar para o comandante do navio que a tortura estava afetando a saúde dos presos.
Afirma em seu relato: “O caso mais grave que vi foi o de Tomoshi Sumida, que era frequentemente encarcerado na “cela quente e fria” e realmente sua saúde estava sendo afetada” (COMISSÃO, 2014, p. 826). Deste modo, avisou o comandante do navio que era preciso cessar a tortura: “o comandante do navio tinha realmente um medo enorme que algum dos prisioneiros morresse no navio, um medo que se devia menos a compaixão por prisioneiros, do que o medo que os outros prisioneiros se revoltassem.” (2014, p. 826).
Percebemos, portanto, as mudanças de utilidade do navio Raul Soares: de um simples navio de passageiros alemão à navio-prisão que atuou, inclusive, como encarceramento na Revolta Tenentista do início da década de 1920 (RODRIGUES, 2014 apud PROGRAMA, 2014, p. 2). A ideia de transformar um navio em uma prisão devia-se, nesse sentido, ao cerceamento de direitos para os prisioneiros. Basicamente, a possibilidade de executar o que os militares desejassem.
Considerações Finais
Sete meses após seu atracamento no porto de Santos, o navio-prisão Raul Soares foi desativado. Alguns presos foram libertados, enquanto outros foram encaminhados para as cadeias do Palácio da Polícia na cidade. As torturas físicas e psicológicas com presos e familiares revela uma situação de constante violação dos direitos humanos.
Entendemos que o papel fundamental na luta sindical, a localização estratégica e a existência do maior complexo portuário da América Latina na cidade tornaram Santos área de interesse nacional e motivo de grande preocupação para as autoridades golpistas. Os sindicatos existentes possuíam forte capacidade de mobilização rápida, o que representava um risco para os militares. Além disso, o Fórum Sindical de Debates (FSD) possuía amplo alcance nacional, podendo “[...] movimentar grandes massas de operários contra o governo, e proporcionar greves gerais, paralisando cidades.” (2017, p. 32).
Mostrou-se necessário, portanto, invadir e desmantelar sindicatos e organizações civis. Os que não foram fechados, receberam interventores sindicais indicados pelo Estado, estes deviam “[...] articular e aprovar propostas do governo e
evitar as greves.” (2017, p. 32). Somadas as ações contra os sindicatos, era preciso impossibilitar a organização política dos santistas. Assim, a cidade sofreu com a intervenção federal que durou quinze anos e despolitizou a sociedade.
Como tentativa de sufocar qualquer possível organização de resistência à Ditadura Civil-Militar, compreendemos que o governo militar utilizou o navio-prisão Raul Soares como forma de aterrorizar a “cidade vermelha”, os militantes políticos e todo o estado de São Paulo.
Referências Bibliográficas
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BURATTO, Rafael Pedroso de Campos. Raul Soares: Um Navio que veio à Santos silenciar. Monografia (Especialização em História, Sociedade e Cultura) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2017.
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